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Cerimónia Oficial de Abertura do Ano Lectivo 2005/2006

“Ao arrumar velhos papéis, encontrei a intervenção que proferi no passado dia 15 de Setembro de 2005, na Cerimónia de Abertura do Ano Lectivo 2005/2006 da Insignare, sob o tema “A Escola, que Desafios”. A curiosidade está apenas em rever pensamentos e testar a sua coerência. Concluo que as instituições estão acima de ideias e projectos pessoais e que mesmo um discurso personalizado, não consegue fugir a um objectivo colectivo. Neste tempo de constante mudança, torna-se fundamental ouvir e perceber os sinais, apoiando a construção de um caminho comum. Imaginar que ainda será possível esconder-se no conforto silencioso de uma permanente pasmaceira, provocando ruídos e acicatando ânimos, é uma má opção. O sentido colectivo vai decididamente noutra direcção. Ficam as palavras de então…”

Cerimónia Oficial de Abertura do Ano Lectivo 2005/2006


Escola Profissional de Ourém

15 Setembro de 2005

Aula Inaugural: A Escola, que Desafios
 
“Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.


O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa…


Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.


Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!


Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.


E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…”


“Liberdade” é o título deste poema de Fernando Pessoa. E porque um poema é sempre bom para começar alguma coisa, escolhi estas palavras de um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos.


Faço-o, agradecendo a gentileza do convite que me foi dirigido pela Directora desta Escola, para com os meus parcos conhecimentos, abordar o tema “A Escola: que desafios”. Espero não vos ocupar tempo demasiado, tão só aquele que me permita transmitir aquilo que penso deste assunto, vasto como convém numa cerimónia deste género, eventualmente predisposto para sobre ele falar muito e não dizer nada.


Esta referência aos meus parcos conhecimentos, não é desta vez uma referência protectora perante uma assistência eventualmente competente, o que neste caso até é verdade, mas é mesmo verdade. Ao reflectir sobre o tema que me foi imposto, descobri, como se já não o soubesse, que sei muito pouco de Educação, ou pelo menos muito menos do que aquilo que deveria saber, sei, no entanto, alguma coisa sobre a Escola, e muito particularmente sobre Escolas como esta, Escolas de Profissões.


Que razões terão levado Fernando Pessoa a dizer-nos que “Ler é maçada estudar é nada” ou “Estudar é uma coisa em que está indistinta, a distinção entre nada e coisa nenhuma”. Que outras razões nos terão feito ecoar pelos corredores das Escolas de todo o Mundo, o “hey teacher, live the kids alone”, que de uma inspirada música dos “Pink Floid”, se transformou num hino, de revolta e contestação, contra o sistema educativo instalado. Sobre um e outro, um mais que outro, já passaram uns bons anos, mas apetece-me dizer que nada evoluiu assim tanto.


A Escola é um espaço de aprender a Liberdade.


Digo eu. Digo-o com a certeza, ou se quiserem a firmeza, de quem passou pelo sistema (desculpem-me o aparte, mas com esta referência ao sistema, vêm-me constantemente à memória o Presidente do meu Sporting, eterno contestatário de um sistema que parece só ele ver), bom mas, dizia eu, com a firmeza de quem passou pelo sistema, sem na maioria das vezes ter percebido, como funcionava e para que servia. Igualmente contestatário do sistema, como Dias da Cunha, fico com a sensação, hoje, que pareço um Dom Quixote, investindo sobre moinhos de vento, transformados em imaginários inimigos. Talvez não o sejam tanto assim.


A Escola é um espaço de aprender a Liberdade.


Com trabalho, com sacrifício, com momentos de alegria e de tristeza, por vezes com entusiasmo, tantas vezes arrastados nas intermináveis e sonolentas aulas. Aprender a Liberdade, obriga a corrigir, a castigar, a aprender a respeitar.


Obriga a que todos os seus actores saibam escrupulosamente os seus papéis, e que no vibrar emocionante da representação lhes seja permitido, inventar. Palavras, pensamentos, frases inteiras se for preciso, deixando atrapalhados, aos papéis, todos os outros actores.


A Escola, espaço de aprender a Liberdade, é um espaço de Invenção.


Para o ser, deverá construir-se em torno de um modelo aberto, nem por isso menos rigoroso, permitindo uma constante intervenção de todos. Na Escola, aqueles que verdadeiramente contam, aqueles que são imprescindíveis para o seu funcionamento, os Alunos, deverão ter espaço para uma intervenção sistemática, ajudando a construir o modelo onde estão integrados. É deles, muito deles, que depende a capacidade de inovar, fomentando um processo constante de transformação. Mais importante, muito mais importante, que a capacidade de regulamentar até à exaustão tudo o pode acontecer numa Escola, é fundamental criar espaços para acontecer aquilo que não é previsível, para inovar, para criar momentos de ruptura.


Num País, neste País, especializados em legislar e regulamentar, delirantemente até ao infinito, como se a nossa capacidade de cumprir conseguisse abarcar a extensão interminável das regras que nos pretendem impor, esquecemo-nos constantemente de criar espaço para uma liberdade criativa. Aferrolhados em indecifráveis regulamentos, constantemente alterados e aumentados, restringimos a liberdade dos alunos, porque antes e acima, alguém se preocupa em limitar a liberdade da Escola.


E aqui falamos do Estado. De uma postura do Estado, do seu aparelho, que atravessando diferentes Governos e tendências políticas, reforça constantemente a sua capacidade centralizadora, retirando à Escola qualquer possibilidade de alterar, de mudar, de inovar. A Escola, reflexo deste doentio centralismo, começa a não ser mais que um modelo normalizado, balizado, regulamentado, de uma ideia burocrática de educação.


O Estado, ao invés de assumir um papel de regulador de banda larga, e de fiscalizador a posteriori dos procedimentos, dos métodos e dos resultados, assume um papel de normalização centralizada, retirando qualquer possibilidade de afirmação pela diferença. Neste modelo, os melhores são aqueles que conseguem cumprir escrupulosamente os regulamentos e os cinzentos objectivos neles traçados, raramente os que conseguem atingir superiores patamares, os que conseguem fazer melhor, fazendo diferente.


Quase me apetece dizer, que é ridículo falarmos de Projectos Educativos. Pelo caminho que insistentemente vamos prosseguindo, bastaria um e apenas um Projecto Educativo, para cada um dos subsistemas de ensino. As Escolas seriam ou serão, todas iguais e por isso, centralizadas, controladas e suficientemente burocratizadas, seriam ou serão, todas igualmente boas. Excelentes, certamente.


Se os “Pink Floyd” pediam para o professor deixar os alunos em paz, eu peço, ao Estado, para deixar as Escolas em paz. Para as deixar crescer com as suas singularidades, na personalização dos seus diferentes modelos, na construção do seu Projecto Educativo.


A Escola, resulta dos impactos da comunidade onde se encontra integrada, constrói-se em torno das influências exteriores que recebe, mas pode e deve, igualmente, interferir no processo de desenvolvimento. Para isso, tem que respirar ao mesmo ritmo, experimentar as mesmas sensações, ser eminentemente solidária.


A Escola é um espaço de múltiplas sinergias.


Como promotora de desenvolvimento uma Escola, esta Escola, terá que aperfeiçoar até à exaustão as suas formas de relacionamento com o tecido empresarial, numa perspectiva de absorver conhecimentos baseados na experiência, de promover uma capacidade de melhorar modernizando, de conhecer e avaliar as necessidades de mão-de-obra especializada, de assumir a inequívoca responsabilidade de promover a empregabilidade dos seus alunos.


Defendo hoje, que a cada aluno de uma Escola Profissional deveria obrigatoriamente corresponder um posto de trabalho, sendo da Escola a obrigação de o encontrar. Uma postura deste tipo, certamente discutível porque complexa e difícil, provocaria uma profunda alteração da forma em como ainda são olhadas estas escolas, tornando-as imprescindíveis em qualquer modelo de desenvolvimento económico.


A urgente intensificação da relação Escola / Empresa, não suporta estágios com a duração de 1 mês, não suporta decisões que têm tentado transformar este tipo de Escolas, em réplicas menores, pelo menos na dimensão, das tradicionais Escolas Secundárias.


Dezasseis anos após a criação do ensino profissional, continuamos, como que divertidamente, a discutir a sua capacidade de sobrevivência, inventando constantes alternativas ao seu esvaziamento.


E aqui as empresas e as suas associações representativas, deverão saber assumir as suas responsabilidades. A multiplicação de projectos de formação profissional, na generalidade desenvolvidos para suportar meras despesas de funcionamento, é um forte entrave a uma afirmação credível do ensino profissional em Portugal.


A par disto, padecemos de uma incapacidade que se eterniza ao nível da dignificação das profissões. O nosso discurso é positivo, nestas questões da mão-de-obra especializada até parece que estamos todos de acordo, mas inesperadamente esbarramos numa constante incapacidade em disponibilizar os espaços e os meios que dignifiquem as profissões. Sem uma forte valorização social das profissões eminentemente técnicas, dificilmente conseguirão atrair jovens para as Escolas, correndo o risco, de assistirmos a um crescimento dos índices de desemprego, proporcionais aos da importação de mão-de-obra estrangeira.


Uma Escola construída sobre um modelo normalizado tem a tendência natural para se fechar em si mesma, transformando-se numa ilha, não recebendo nem projectando impactos. Uma Escola assim forma alunos marcados por um total amorfismo social, por uma incapacidade em interagirem com a comunidade de onde provêm e que deles espera uma continuada construção de um futuro melhor.


Uma Escola assim é apenas mais uma. Os alunos de uma Escola assim, são aqueles de quem continuadamente nos queixamos, porque não lêem jornais nem vêem televisão, porque não conhecem os nossos políticos, nem muito menos as suas políticas, porque apresentam uma postura marcadamente desinteressada, afirmando sempre em contraponto a qualidade de qualquer outro país. Queixamo-nos mas continuamos alegremente a construir uma política educativa, assente na centralização, na burocracia e na desconfiança, como se esse fosse o único caminho possível, para construir um modelo educativo eficaz e com futuro.


Num momento político, marcado pela Inovação, pelo referido Choque Tecnológico, pela Internacionalização Experimental dos nossos Jovens, continua a ser tempo para reflectir, neste País da Revolução de Abril, num modelo educativo assente num conceito responsável de Liberdade ao nível da gestão escolar, da construção dos projectos educativos, da experiência livre de aprender.


A Escola é um espaço para Aprender.


Afirmação tão óbvia, que me custa até dizer, que nem sempre assim é. Pior, não o é na generalidade das vezes. A Escola e os seus professores, concentram, tantas vezes, parte significativa do seu esforço no processo de avaliação, em detrimento do processo básico e insubstituível de Ensinar e Aprender. Para que vale, um tão forte investimento na avaliação, se os alunos, pelas razões mais diversas, não conseguiram aprender. Não entendam que com isto quero dizer, menor rigor nos processos de avaliação.


Não, eu até defendo o retorno a modelos clássicos, consumidos pelo tempo, que me levaram a fazer exame da 4ª classe na Escola da Fátima e um pomposo exame de acesso ao 1º ano do Ciclo Preparatório, hoje o 5º ano, no liceu de Leiria. Rara oportunidade para vestir o fato da 1ª Comunhão, se ainda servisse e experimentar o nervosismo e a ansiedade de não me esquecer de nenhum dos rios nacionais ou de qualquer linha de caminho de ferro.


Mas defendo igualmente uma concentração do esforço, do verdadeiro esforço em ensinar, de não sair da sala, sem a certeza de que todos, mesmo todos aprenderam alguma coisa e que ninguém melhor que eu sabia o que cada um deles sabia.


Vem-me à memória um dos magníficos Professores da minha vida. O Padre Gregório, que nas velhas salas do Colégio de São Miguel, construía momentos de puro prazer de aprender, nunca deixando de ser rigoroso, sendo simultaneamente divertido, preocupado e amigo. O Padre Gregório era um Professor, como outros que felizmente conheci como colegas de profissão e a quem muito deve esta Escola.


Lembro-me do Professor Diamantino, que na complexidade da sua Matemática e no rigor da sua postura, conseguia surpreender o aluno com conhecimentos que ele próprio desconhecia ter. E na agitação esforçada das suas aulas, restava-lhe, no final, uma bondosa e motivadora avaliação.


Lembro-me também do Subtil, outro Professor, que transformava os seus alunos em ferrenhos adeptos do rigor contabilístico. Todos estes e alguns mais, centraram e centram a essência do seu desempenho, no acto sublime de aprender, tornando acessório o momento de avaliar.


Repito, é um acto perfeitamente dispensável avaliar quem não conseguiu aprender. Mal vai o professor que não domina, a cada momento, o nível de conhecimento dos seus alunos.


A Escola é um espaço para Educar.


É nela que se vão desenvolvendo os diferentes momentos de construção do jovem enquanto cidadão. É dela e sobretudo daqueles que nela trabalham, que ele vai retirando os seus exemplos de vida, as suas formas de reagir, a sua maneira de olhar o Mundo. Como escrevia João Lázaro, num importante contributo para o Projecto Educativo desta Escola Profissional, a Escola é o espaço de construção de um Humanismo Crucial, liberto de conformistas amarras, de filosofias e modelos existentes, um espaço aberto à construção de um novo cidadão, que pelo seu próprio esforço tem o direito de descobrir novos caminhos.


A institucionalização dos modelos e projectos educativos, são o principal entrave ao processo construtivo de um cidadão melhor. Preocupado, interventor, solidário. O Humanismo Crucial de João Lázaro foi entendido por mim, como um caminho de Liberdade. Talvez o tenha entendido como mais me interessava, mas essa é a minha liberdade.


A Escola, espaço para educar, para aprender, para inventar, espaço de múltiplas sinergias, é acima de tudo um espaço para aprender a Liberdade.


Muito obrigado.


Francisco Vieira